A Boiada

A BOIADA

Tenho medo de deixar de ser pobre!

Eis que pobre já nem come.

Tenho medo de deixar de ser pobre;

visto que pobre vive de passar fome!

- Acorda Lúcia! Já são quase cinco horas da manhã! Acorda que eu não posso te deixar aqui.  Já coloquei a coberta sapeca-negrinho no carrinho de mão,  deita lá, ande menina!  Seu remédio é as sete da manhã e só volto depois das oito para casa e não posso te deixar. Vamos,  tenho que catar o sebo para fazer o sabão e você vai comigo!

Eu de pronto resmungava olhando aqueles olhos verdes; Divina senhora a me zelar eternamente. As sete era o remédio; as cinco horas era a friagem de beirada de corrego poluído. Ficava ali,  bem no final da rua de minha casa. Lá estava a grande casa branca, era a  casa da matança de boi. 

A rua era uma ladeira;  e os caminhões,  com grandes gaiolas de madeira,  desciam carregados de boi bem na porta de minha casa. Aquelas carretas assoviavam a todo momento. Chegavam carregadas de gado de toda cor. Todos iam para o sacrifício,  era uma marretada na cabeça para que o bicho não se desse conta da morte,  e a facada vinha no peito; logo em seguida passavam dependurados num gancho eu os via por uma janela.   Uns gemiam, e  eu ouvia aquela dor de boiada,  eu era um deles. Outros berravam o último adeus ao mundo. O certo era,  estavamos nós todos caminhando para morrer naquela vida de boi. 

_Lúcia você está com fome? Se tiver já come farinha com açucar pois o pão acabou e não temos dinheiro pra comprar então come o que tem! Dá sete horas e você tem que tomar remédio!  E não pode estar com estômago vazio.

Eu ouvia,  fome,  e sono era grande,  o que era fome? Aquilo era sono de morte,  anemia da brava  que nem me deixava assustar com o esturro do leão todos os dias na madrugada. É caro leitor eu vivia na selva de uma cidade que mata de fome pobre que come! E o zoológico da cidade ficava  do outro lado do corrego,  numa distância que não sei precisar; mas as três da manhã eu ouvia o seu rugido! Outras vezes não o escutava estava dormindo o sono dos mortos vivos.

O próximo rugido era da minha mãe leoa,  que descia a rua empurrando a filha caçula num carrinho de mão. Ela me embrulhava numa coberta capaz de matar qualquer alergico,  aquilo sapecava mesmo,  e era o que tinhamos para o frio. Graças a uma ong de senhoras que doavam cobertores! Assim era a fria vida de toda gente. 

Eu sempre acordava ali, a beira de um corrego poluído pela matança de boi; poluído por fezes de gente de toda classe. Eu acordava me coçando toda e com o cheiro de esgoto e vaca morta nas narinas. Eles ferviam algo ali dentro,  e o cheiro de esterco e vaca mal fervida eu me lembro bem. Quando eu reclamava da coceira do cobertor eu ouvia de mamãe que filho de pobre não tinha alergia, e  que se tivesse morria, jamais escapava. Então eu já me vestia de formiga atômica e dizia a mim mesma que eu era muito forte,  tanto quanto a formiga do desenho. E assim eu parava de coçar para eu não sangrar até morrer. Os bois estavam a morrer bem ali,  eles perdiam seu sangue naquela água de esgoto que descia vermelha de sangue e salpicada de branco de sebo; com certeza ia chegar minha hora a qualquer momento se eu não fosse a formiga mais forte daquele lugar.

Mamãe a me empurrar no carrinho de mão,  descia a rua naquela escuridão sem fim. A luz do poste do louco, assim eu a chamava, porque um homem ali se ajoelhava com a bíblia na mão, gritando coisas da bíblia e perdoa-me Deus; vez ou outra lá ficava este homem nesta cena.  Esta luz era tudo que tinhamos.  As demais sempre queimavam e ficava por isto mesmo! E eu pensava,  o doido reza aqui embaixo desta luz,  talvez a fé maluca dessa gente não deixa a única luz que temos se apagar; é preciso ser louco! Essa luz por sinal ficava bem no meio daquela ladeira. Era muito boi,  descendo pra morte e eu gritava: - boiviiii mesmo,  e carne que é bom nem vi nem comi. Mamãe sorria das minhas algazaras naquela magreleza de corpo e vida magrela de sebo pouco pra encher a mesa. 

Quando voltavamos da cata do sebo,  subindo a rua com o carrinho antes minha cama,  agora as oito ou nove da manhã o carrinho já era cama  de sebo, cama de restos. Estava lotado de sebo que mamãe derretia em grandes tachos e fazia o sabão usando água de cinzas; e era este sabão que vendíamos na feira. Era tudo que tinhamos naquele momento. Era dai que saia a farinha para comer com açucar, era dai que saia o arroz quebrado sem tipo e com cheiro de barata, era daí que vinha o pão de vez em quando, e em épocas fartas tinha dorso de frango,  pé de frango que era meu banquete preferido. Era assim que evitavamos o mesmo destino da boiada,  era assim com dinheiro bem curtinho que seguravamos o fio chamado de vida nos corpos judiados pelo contexto social.

Eu descia com mamãe as quatro da manhã na rua escura! A matança começa por volta das quatro e meia,  e mamãe ficava ali em pé na beira do corrego catando todo sebo que saia de dentro daquelas manilhas de barro, por elas se jogavam no rio todo o resto,  todo o lixo da matança de boi. Por vezes assim que chegavamos a beira do rio,  e  mamãe dizia: - já estão começando a matar, a água já foi ligada e está saíndo na manilha. Eu sonolenta respondia: - quando eu acordar mãe eu te ajudo a catar o sebo e se hoje sair um bezerro vivo na manilha eu vou ficar com ele e a gente vai fazer dele uma boiada grande e a senhora não vai mais vir comigo pra cá,  nós vamos é dormir! Vamos é comer pão com leite. 

Todo bezerro saia morto. Eram fetos de vacas prenhes que foram sacrificadas. Mas,  eu não sabia, mamãe nunca me dizia isto,  e eu nunca desistia de sonhar. Ela sorria de mim e eu sorria para ela. Foi assim que ela me ensinou a ter esperança.

Foram incontáveis as vezes que vivi toda aquela cena! Ela ali em pé,  na friagem da madrugada,  esperando o lixo, o sebo, descer pelo esgoto para que ela pudesse pegar para nós as sobras da vida. Eu até tentava catar sebo com ela na madrugada quando o sono me fugia,  mas ela não deixava,  dizia que eu ia dar mais pneumonia. Eu só podia ajuda-la com o sol alto no céu. Ela mandava que eu ficasse quieta ali dentro do carrinho de mão do lado dela a beira do corrego poluído. E eu pegava no sono novamente,  acordava as sete da manhã com mamãe me dando o remédio sagrado de todo dia e um copo com água potável que trouxera de casa. Eu bebia e por vezes apagava novamente, dormia naquela margem social da vida e acordava as oito com mamãe mais uma vez dizendo: - acorda Lúcia! Acorda que tenho que colocar o sebo no carrinho para a gente ir embora! 

Era assim que meu dia começava por muitas vezes nesta vida,  eu saia do meu quente ninho para dar lugar ao sebo que viraria sabão logo logo,  e assim faziamos o pouco dinheiro da escassa comida de pobre desnutrido e doente,  assim era o viver. Subíamos a rua. Eu carregava a coberta, a água e uma capanguinha da vida,  lá dentro tinha remédio, tinha fé e farinha,  e se a fé fosse grande tinha até pão amanhecido que eram os mais baratos. Assim minha infância desceu e subiu a rua 11. Rua de tanta tristeza,  rua de onde eu sempre lutei para escapar! Fui prisioneira daquela rua da boiada, rua da matança,  rua infeliz. Rua onde mora a tristeza. Que sorte a minha não morri bezerra,  eu era filha da leoa! Deixei aquela rua. 


Um grande abraço a todos!





 

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